A natureza da pandemia

01/01/2021

 "Só se tem profunda consciência do presente quando se fica na margem mais exterior do mundo, tendo atrás de si tudo que ruiu e foi superado, e diante de si o nada, do qual tudo pode surgir. É esse estar no presente que possibilita um nível mais elevado de consciência" Carl Gustav Jung


Sem dúvida foi este o lugar aonde fomos colocados, com a pandemia e a quarentena, tendo de ficar frente a frente com o presente, sem maiores distrações, encarando com maior atenção como estamos vivendo o aqui e agora. Muitas verdades que incomodam, e o medo desse destino que preferimos evitar falar: a morte. Para além do doloroso trauma coletivo e luto social que atravessamos, e cujos afetos e efeitos precisamos humanizar e elaborar, há ainda uma morte simbólica profunda acontecendo enquanto fazemos essa travessia interior, esse ritual de passagem para a consciência, cada um em sua caverna particular, como eremitas em reclusão e isolamento, impelidos a acessar o reino de dentro, a sabedoria que não se encontra nos livros, mas na voz da própria alma. E é claro que precisamos da solitude e do silêncio para escutar.

Numa cultura extremamente voltada para a extroversão, para o "ir para fora", tivemos de dar um passo para dentro, dentro de casa, dentro de nós. Entrar em contato mais íntimo com a nossa natureza, com o corpo, com o alimento, com o sono, com os medos. Essa natureza instintiva que a rotina corrida de sempre nos faz desviar. O corpo-mãe-casa que é o templo do espírito.

Paramos e tivemos a oportunidade de perceber com muito mais clareza o tamanho da crise que se passa em nosso modo de viver, e a transformação que precisamos encaminhar. Nas palavras de Ailton Krenak, "se enxergarmos que estamos passando por uma transformação, precisaremos admitir que nosso sonho coletivo de mundo e a inserção da humanidade na biosfera terão de se dar de outra maneira. Nós podemos habitar esse planeta, mas deverá ser de outro jeito" (A vida não é útil - sonhos para adiar o fim do mundo).


Recebemos a visita de Pã

Pã é uma deidade que fala da integração de Corpo, Mente e Espírito, essa busca que tem sido de todos nós, na jornada de autoconhecimento, a coerência entre o Ser exterior e o Ser interior em nós. Nas palavras de Kathleen Burt, em 'Arquétipos do zodíaco': 

Pã é espontâneo, age compulsivamente com base em seus instintos, é alegre e espirituoso. Pã não se importa nem um pouco com o Topo da Montanha e optou por não fazer parte do mercado competitivo. Ele evita a cidade e vive fora de seus limites, em cavernas, grutas e florestas. Pã é a Natureza. Em todos nós, Pã é o corpo, com seus impulsos e sua sabedoria. 

Adentrar a nossa caverna e, de um modo ou de outro, estar "fora dos limites da cidade", nos fez conviver com o não convencional, com o medo, concentrando nossa energia em estar vivos, no aqui e agora. 

"Em contato com (seu corpo), Psique convenceu-se de que o Sol voltaria a brilhar, de que o amanhecer do dia seguinte traria um dia melhor" - a sintonia com a nossa natureza interior e exterior, para a saída de uma situação de sofrimento psíquico. E bem sabemos dos sofrimentos que temos acumulado em nossa situação social e espiritual, afastados dos ritmos naturais, sendo muitas vezes inevitável a situação de pânico - o total descontrole que vem compensar o excessivo pensamento controlador.

O que Pã vem comunicar é a falência do normal, e a urgência de despertarmos para o bem viver, a comunidade ativa, a ecologia dos afetos, a sustentabilidade do Ser, a política dos acordos internos. Ir voltando a compensar para dentro o excessivo movimento para fora, alinhando-se com a nossa condição de ser humano, e com as forças naturais que estão para além do que vislumbramos e imaginamos. Afinal, o normal que imaginamos e construímos tem dado tantos sinais de esgotamento. 

A agressão à Terra, que se passa capítulo após capítulo, vem dizer da destruição do feminino em nós, do lugar de criação e gestação tantas vezes violentado, dos ritmos naturais que corrompemos em nós - do sono, do alimentar-se, do nutrir-se, dos ciclos lunares, do calendário natural. Vem dizer da exploração do nosso próprio corpo, nosso território sagrado, templo colocado a serviço de um crescimento sem fim, dos objetivos que não cessam, das metas e metas que brotam, dos ruídos que engolem o silêncio gerador.

O chamado de Pã realiza em nós profunda transformação

Em minha jornada pessoal, já se vão três anos nos braços da mata, em reclusão. É uma transformação que não se pode contar inteira, precisa ser vivida. Tenho atravessado alguns caminhos terapêuticos, mas não conheço maior força de transformação do que a imersão na natureza. Uma profunda transformação ocorre em nossa percepção sensorial e intuitiva. Mudam os ritmos cardíaco e respiratório, o ritmo do pensar, e as conexões do sentir. Não será essa a riqueza que a Terra tem para nos entregar? o planeta que exploramos como recurso para os delírios humanos? 

O caminho de realinhamento com os ciclos naturais, os sons do vento, da chuva, das águas, do fogo. Os sons da terra. A floresta em nós. Nossos medos e alimento. Seja num nível de imersão na natureza, seja num nível também simbólico da natureza em nós, é a partir da natureza dos ciclos, em sintonia com o nosso templo corpo, que podemos também escutar a voz do espírito que somos, e reencontrar o sentido da vida para além do produzir-e-consumir. 


2020, a coroa

O chakra coronário é o centro de energia do topo da cabeça, a nossa coroa. Um chakra associado à Transcendência, à ligação com a dimensão espiritual da vida, com o divino em nós, envolvendo a percepção de estados elevados de consciência, nossa capacidade de ir além de uma visão materialista da vida, e alcançar uma visão mais "elevada", "sistêmica", "ecológica", que percebe o todo, o somosum.

Pela primeira vez em nossa longa história recente, a Terra parou perante um vírus que lembra a coroa (corona). Parece ser um sinal de que estamos sendo chamados a uma ativação coletiva de nosso chakra coronário, a uma transcendência que permita ver a, a partir do corpo são, uma mente superior em nós, na unidade que somos. Um chamado para desbloquear as funções psíquicas da nossa coroa (destronando outros reinados...); para a glândula pineal e o sistema nervoso central, percebendo a conexão energética que nos integra para além da aproximação física. Somos uma rede e estamos nos dando conta disso, em muitos níveis. 

Em meio ao drama vivido, a ferida revela a cura, como nos ensina Quíron: ir para dentro, para a própria casa, para o interior de nós, longe das distrações que assaltam nossa energia vital desde muito. É chegado o tempo de uma transformação mais ampla do que meros ajustes incrementais e passageiros, sempre dentro dos preceitos da competição.

E o que é acessado através do chakra da coroa precisa ser catalisado pelo chakra cardíaco, o nosso coração, através dos sentimentos do autoamor e amor à vida, refletindo de dentro para fora um novo tempo evolutivo de maior acesso ao portal que é o lugar do coração, conectado a outra realidade de consciência, e que está agora disponível para nós numa dimensão ampliada.


E esteve o dilúvio quarenta dias sobre a Terra...

cada um em sua embarcação a pensar 

o que quer o Criador com tanta chuva

nos mantendo longe da terra e do sol

perto do medo

longe da luta e destruição

perto da criação

com as sementes na mão

para quando as águas baixarem

na Terra que requer, uma vez mais,

novo plantio


Relatado por Moisés, pelos Sumérios, pelos Egípcios, Persas, Hindus, Chineses... o dilúvio nos inunda a todos, a um só tempo agora, nessas águas invisíveis que nos tomam e transformam, até que retornem o sol e os pés na terra. Adentramos o lugar do coração, aprendendo com as águas.

Gaia, o espírito da Grande Mãe Terra, nos convoca para essa tarefa. As águas representam uma profunda transformação psíquica, um mergulho profundo de nosso ego em um campo da alma que permite o renascer, um batismo. É o mergulho que estamos vivenciando, na "vida acordada" e nos sonhos, em nossa reclusão e reflexões de quarentena, para (re)encontrar caminhos de Ser e de Cocriar, com os outros, com a natureza, em cooperação com o espírito que nos anima.

Avistando a Terra de longe, fica mais fácil perceber que somos um(a), e que a cura é da humanidade, é individual e coletiva.

Pã está a serviço da Mãe Terra

Descobrir que 'estar só' é uma ilusão, que não há paredes e muros que nos separam em essência, que não há isolamento físico que nos impeça de estarmos juntos, que esconda a nossa capacidade de vinculação e transformação social. Mais que nunca, estamos conscientes da teia da vida que nos integra, todos conectados em uma mesma direção - a de revisar a própria vida.

O limite que a Terra nos dá revela para nós a urgência de integrar uma visão sistêmica de quem somos nós. Os dias de quarentena são a oportunidade para estarmos mais conectados com nossas raízes profundas, com a Terra e sua mensagem de equilíbrio necessário, entre feminino e masculino, corpo e alma, matéria e espírito.

O fato é que a nossa evolução não pode estar apartada da dinâmica ecológica da Terra, da existência psíquica do planeta. Gaia está nos dando a chance de recordar. E não é de hoje... 

Que esses dias de dilúvio nos tragam uma visão ecológica da vida, que é o caminho para a nossa transformação enquanto sociedade, porque é o caminho natural, que preserva a vida. Que possamos re-conhecer as raízes que nos sustentam e nos conectam, terra a dentro, coração a dentro, observando a importância de restabelecer os caminhos do feminino, em seu poder de regeneração e criação de nova realidade espiritual. 

Cuidar de si é cuidar do mundo inteiro, partilhando dessa jornada que nada mais pede além de nosso ato corajoso de soltar - soltar o lugar comum, reinventar a vida, reconectar-se ao ritmo natural da Terra, cocriar com a força medonha que nos envolve, dizendo em alto e bom tom: "não dá para voltar ao normal". Talvez tenhamos mesmo que fluir com o que parece ser "loucura", em vez de teimar em normalizar o que nos destrói, compreendendo que há outra realidade fora da grade cultural patriarcal-estatal-mercadológica que vem moldando nossas vidas. Pã, a favor de Gaia, vem pedir a reconexão com o natural, vem pedir a vida através da morte, de corpo e alma, para uma transcendência. Que possamos escutar o seu chamado!

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Uma asa assim, azul

azul cintilante, furta-cor

translúcida

no chão

Por um momento, era a Terra caída

isolada no curso do tempo

emaranhada no silêncio

do auto-olhar

E é Gaia

a atravessar o espelho

no voo sábio de soltar o peso

nestes dias de acordar

São dias de acordar!

Dias de (re)começar...


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Ayalla Freire I Psicoterapeuta Junguiana . Terapeuta Vibracional
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