Crise e transformação

12/07/2020


Konãgxeka,

na língua indígena maxakali, quer dizer "grande água" - uma versão da história do dilúvio, simbolizando a punição pelo egoísmo dos homens.

Quando estamos imersos em tempos nebulosos, difíceis, seja no coletivo ou em nossa vida pessoal, significa que estamos imersos em nossa "grande água", nossas emoções mais profundas - um período para estar em conexão com o que sentimos, ressignificando nossos sentimentos, nossa vida. Atravessar a grande água é muitas vezes doloroso, pois ela é meio de purificação, então essa passagem aquosa requer deixar algumas coisas (em nós) para trás, em um processo de limpeza - na vida interior que estamos vivendo, e que irá naturalmente refletir-se na vida exterior também.

Mas a água também é centro de regenerescência, fonte de vida, nossa origem uterina, o que implica em renascimento após a travessia necessária por nosso mar de emoções. E precisamos então, após o tempo que for necessário, sair da "infinidade dos possíveis" para um novo caminho de desenvolvimento.

Tudo isso foi dado a nós vivenciar nos dias de quarentena, demandando autocuidado, auto-observação, a tomada de consciência de hábitos, escolhas e estilo de vida, comportamentos e atitudes que não podem mais ser sustentados na nova sociedade que estamos sendo convocados a construir. 

Costumamos ver as crises como momentos ruins. Seja num nível individual ou coletivo, as crises, de fato, são travessias desafiadoras e que podem trazer sofrimento. Afinal, uma crise é sinônimo de momento difícil, mudança súbita e tomada de decisões importantes. É o indício de que o caminho de sempre já não atende mais, e precisamos nos despedir dele para trilhar outro. E isso traduz para nossa consciência uma certa morte, uma morte simbólica de uma vida que já não pode seguir em nós, de uma pessoa que estamos deixando de ser, para que outra possa nascer. Estamos todos, de certa forma, morrendo e renascendo ao atravessar a nossa crise pessoal e coletiva nos dias presentes, ainda mais vivenciando o luto real de tantas perdas, um trauma coletivo que ainda teremos de elaborar.

O mais importante em um momento assim, além de encontrar pessoas para partilhar os dias, é perceber que ao mesmo tempo que algo morre em nós, algo também está nascendo. Antes da nossa sociedade produtivista, que condena os momentos naturais de angústia e tristeza, a melancolia também era vista como benção, como fonte de inspiração e criação, e portanto entendidas com naturalidade e respeito. Especialmente na arte, as diversas expressões que nos tocam foram trazidas por aqueles que vivenciaram crises, atravessando essas passagens em um diálogo que permitiu deixar uma mensagem, transcender a dor e ganhar um sentido. 

A crise é potencial de transformação, é a energia que pode nos mover para outro estado ampliado de consciência, na medida em que nos entregamos ao aprendizado que ela quer nos entregar. Não tem sido fácil para nenhum de nós dar novos passos em meio a tamanha desconstrução, mas não podemos esquecer que tal vazio é também fonte de criação. Criação de uma nova sociedade, criação de nós mesmos em outro nível, criação de outra vida possível.

Ficar na margem ou adentrar o novo é sempre uma escolha. Consciente ou inconscientemente, sabemos que os mesmos caminhos levarão sempre aos mesmos lugares.

Renascer

"Deixar de ser" quem a gente era até aqui, criar uma nova vida na mesma vida, é um desafio imenso. Implica em deixar para trás os velhos padrões para assumir um novo lugar, superando as resistências, especialmente internas, e abraçando novo jeito de ser e estar; buscando ir além das restrições e entrando em contato com a paz de estar em si, apesar de toda a desconstrução ao redor. 

No Livro do Desassossego, um registro de Fernando Pessoa diz assim:

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo. Esquecer os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos".

Parece que o chamado da Terra é para que nos movimentemos de lugar, então teremos que fazer caminhos diferentes, ou resistir e sofrer o descompasso do ritmo que Gaia está impulsionando em nós. É a escolha por renascer, trocar mesmo de pele, retirar os véus que vamos colocando sobre nós ao longo da vida, por necessidade, ajuste, medo... e revelar quem somos. Revelar especialmente para nós mesmos, até chegar mais perto de quem a gente era quando chegou aqui, da visão e potencial de criação da nossa criança interior, que não conhecia a imposição do medo.

Os passos que nós damos com base no medo serão passos que não irão prosperar, pois o fruto será mais ou menos amargo dependendo da semente e de como foi semeada, e cultivada - dos recursos/ energia que a fez crescer. Então podemos mudar o caminho e afastar-nos do medo, reservar um momento do dia e imaginar ao nosso lado a nossa criança interior, ouvir o que ela tem a dizer, ou lembrar o que ela queria fazer no mundo. É um exercício simples e profundo, que pode abrir muitas portas. É como uma meditação. E é um caminho diferente que pode levar a percepções e escolhas diferentes. Se essa é a sua vontade!

A pergunta

Um dia, há poucos anos atrás, perguntei à vida qual era a vontade dela para a minha existência. Havia angústia e eu havia percorrido tudo que imaginava ser o meu caminho. Eu não sabia o que fazer, e pedi à natureza e a todas as suas forças que me revelassem o caminho. A natureza dentro, a natureza fora. Eu perguntei para a vida o que ela queria de mim, depois de toda uma jornada perguntando para mim o que eu queria da vida. Essa inversão mudou tudo, e tudo passou a mudar de direção. Mas havia chegado a hora daquela pergunta. E a pergunta muda tudo. Gera incômodo, movimento, transformação. Revelação. É preciso estar com o coração aberto para ver muitos véus caindo...

Entre sair do lugar e chegar a outro, existe uma jornada, uma passagem, uma travessia, geralmente cheia de provas. Se recuamos de algum ponto difícil no caminho, não chegamos a ver o que está do outro lado. E tudo bem com isso. Cada escolha traz seu aprendizado. E a cada um cabe a sua escolha, em seu universo de possibilidades. Mas se você sente que falta um pouco mais de paz, talvez tenha chegado a hora de se perguntar: "O que você quer de mim, vida?". Apenas tenha a convicção de que chegou a hora de fazer a pergunta. Porque, uma vez feita, de coração e entrega, tudo pode mudar!

o caminho de tomar consciência de si é o nosso processo de Individuação

Carl Jung chama de Individuação o nosso caminho de desenvolvimento, como percorrer uma mandala em conexão com o nosso centro, através da diferenciação dos valores coletivos, em um processo de conscientização que segue até o fim da vida, com múltiplas revelações. E isso passa por olhar e integrar a nossa sombra pessoal, em diálogo com a sombra coletiva -  aquilo que ainda não avistamos em nós (seja de caráter destrutivo ou construtivo!). É um trabalho doloroso para o ego, um trabalho de mortes simbólicas e renascimentos. Por isso é representado no arquétipo do herói e sua jornada cheia de obstáculos - as crises.

Mas não tem jeito, a Individuação é o nosso caminho natural, e mesmo doloroso vai revelando um novo jeito de "estar no mundo", a partir de "si mesmo", da nossa jornada única no mundo, fora dos padrões e comparações, tecendo nosso próprio e particular sentido de vida. 

Em uma sociedade de massa, midiática, que nos impõe tantos padrões, ser quem somos fica mais desafiador. Adoecidos estamos por isso. Isolados ficamos, paradoxalmente, em uma época em que o acesso aos outros é mais fácil e rápido. E a Individuação, que não significa individualismo, traz justamente a nossa integração social, mas de um outro jeito - não mais vinculados por padrões coletivos inconscientes, e sim a partir da clareza de 'nossa parte' no todo que integramos, e de quem somos em essência e propósito. Por isso aproximar-se de nosso caminho único de vida é, ao mesmo tempo, o caminho mais consciente de participação na transformação coletiva.


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Ayalla Freire I Psicoterapeuta Junguiana . Terapeuta Vibracional
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