O que a crise quer de nós?
O que a crise quer de nós?
Em uma cultura que nega o conflito, estamos sendo colocados em um lugar de polarização e tensão que acontece, antes de tudo, dentro de nós.
Perante a nossa crise política brasileira, tem sido árdua a tarefa de adentrar cada vez mais profundamente em nossas raízes patriarcais enraizadas, perante o escancaramento do que se espelha diante de nós com essa crise. Um remédio bastante amargo, em meio à pandemia e às alucinações tão desumanas da representatividade nacional no governo, com consequências que ainda não podemos avaliar.
É a estrutura e cenário para um conflito interno do qual não podemos nos ausentar, pois toca as nossas feridas, a nossa condição psíquica individual, consciente e inconscientemente, afetando a vida nossa de cada dia, ao ter que encarar, ficar cara a cara, confrontar a manifestação de desejos e atos autoritários, excludentes, dominadores, destrutivos da vida. Bem à luz da consciência, às vezes bem ao nosso lado.
Qual será o sentido psicológico dessa jornada tão desafiadora? Reapresentada em nossa história nesse início de século? Qual pode ser a telealogia ou o destino desse movimento? Na intenção de instigar, quem sabe, um novo olhar sobre essa preocupação de todos nós, trago aqui uma abordagem simbólica, arquetípica, a partir do olhar do psiquiatra e analista suíço Carl Gustav Jung (Psicologia Analítica) e sua visão da energia psíquica enquanto dinâmica entre consciência e inconsciente, forças que atuam para nossa harmonização e desenvolvimento - e como isso nos ajuda a ampliar os afetos que nos tomam nesse momento.
É surpreendente como as hipóteses e construções de Jung são atuais e nos auxiliam na compreensão dos nossos movimentos enquanto sociedade e enquanto indivíduos culturais, por exemplo em seus escritos reunidos nos volumes de 'Civilização em Mudança' da obra completa: Presente e Futuro, Aspectos do Drama Contemporâneo, Civilização em Transição. Que trazem o processo de desconstrução e ressignificação do modernismo e, consequentemente, do patriarcado, com sintomas sociais que Jung já identificava em seu tempo, relacionados ao surgimento de uma nova ética, e marcados pela imagem da 'crise'.
Afinal, o que querem os deuses com tamanha desintegração das nossas bases sociais, políticas e econômicas, institucionais e éticas, que vislumbravam alcançar uma democracia? Falar dos deuses é falar da energia psíquica que se realiza através de nós, por meio de imagens arquetípicas e do poder transformador do símbolo - o símbolo transforma, e é preciso atentar para o verdadeiro "mito" que está convocando a nossa transformação. Uma transformação psíquica, que está vinculada a uma transformação social. Transformação esta que ninguém segura quando uma "verdade psicológica" quer revelar-se, manifestar-se, vir à tona, sair da sombra e receber luz - ser percebida. É quando aqueles aspectos sombrios da nossa condição individual e coletiva precisam ser integrados, assimilados por nossa consciência, reconhecidos por nós, e em nós, trazendo aquela difícil conversa com algo que não queremos reconhecer como sendo nosso - está sempre no outro, no que Jung analisa como sendo uma "projeção" da sombra.
Jung trata o inconsciente não como um lugar de despejo da consciência, mas sim como fonte de consciência, lugar de onde os símbolos emergem para a nossa percepção do ego, como caminhos de transformação da própria consciência. O que não está na consciência, está na sombra do inconsciente, que contem todas as tendências construtivas e destrutivas que ainda não percebemos. A sombra é, portanto, fonte de transformação da consciência.
O povo brasileiro se vê "assombrado" por intenções e comportamentos falsamente resolvidos em nossa história social e psíquica, exigindo do indivíduo um alto grau de responsabilidade ética, assumindo para si um trabalho de transformação. De fora para dentro, sim, mas especialmente de dentro para fora, realizando esse mergulho desafiador nas questões sombrias pessoais, para que se tornem, até certo ponto, conscientes. Aguardar 'apenas' do Estado e outras instituições um redirecionamento do caminho, é não querer empreender a autorresponsabilidade, a jornada do herói em busca de superar a vinculação ao reino paterno (nesse caso, patriarcal) para a construção de novo caminho possível. Temos uma fronteira a atravessar.
No Brasil, historicamente buscamos acolher cordialmente o outro, ainda que sob o sentimento de oprimido, e encontramos um jeito para qualquer impasse, evitando o conflito necessário com os condicionamentos excludentes, que nos moldam desde a nossa formação enquanto povo colonizado. Fomos colocando o patriarcado debaixo do tapete, naquele lugar sombrio que não precisamos ficar olhando, entendendo que estava tudo bem com isso. E o que não está à vista cresce em outro lugar, tomando proporções de um 'mito' que se manifesta, uma força um tanto autônoma que se revela e ocupa lugar 'não sabemos como'.
As análises sociológicas a respeito da nossa formação brasileira evidenciam a influência do patriarcado como algo presente de um modo ou de outro, buscando situar, por um lado, como a nossa formação política esteve pautada no paradigma moderno patriarcal trazido pelos colonizadores, e por outro lado como esse paradigma foi sincretizado com aspectos históricos territoriais que passam a resultar em um modelo ruralista-escravocrata.
Maturana (2003) apresenta uma cultura patriarcal como "uma rede fechada de conversações", na qual a nossa vida cotidiana torna-se um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competência, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos, e a justificação racional do controle e da dominação dos outros, através da apropriação da verdade.
Se nos mantemos nessa rede fechada, sem conseguir um diálogo com a própria representação do patriarcado, caímos em um paradoxo, de reagir ao patriarcado com a “mesma moeda” — desconfiança e controle de condutas — passando longe mais uma vez de uma atitude mais feminina de acolhimento e mediação.
E aqui não vamos adentrar na delicada discussão ética em torno dos extremos para os quais caminhamos politicamente, e dos limites e fronteiras de conversação que isso impõe. O fato é que, de um ponto de vista psíquico, estamos todos constituindo a mesma psique coletiva, de onde vem a importância de reconhecer o patriarcado como parte de nós, individualmente. Compreender que vai além de uma personificação externa, e se apresenta como uma estrutura de pensamento, um paradigma. E estamos todos nele. Ainda que em diferentes posições. Muitas vezes manifesta-se como um pensamento ou sentimento interiorizado em nós como uma voz habitual:
E aqui não vamos adentrar na delicada discussão ética em torno dos extremos para os quais caminhamos politicamente, e dos limites e fronteiras de conversação que isso impõe. O fato é que, de um ponto de vista psíquico, estamos todos constituindo a mesma psique coletiva, de onde vem a importância de reconhecer o patriarcado como parte de nós, individualmente. Compreender que vai além de uma personificação externa, e se apresenta como uma estrutura de pensamento, um paradigma. E estamos todos nele. Ainda que em diferentes posições. Muitas vezes manifesta-se como um pensamento ou sentimento interiorizado em nós como uma voz habitual:
- Aquela voz interna que pune, sentencia (a si ou aos outros);
- Aquela voz que desqualifica, diminui, restringe ("não posso", "não consigo");
- Aquele comportamento competitivo em espaços da vida fora do mercado (corpo, relações, espiritualidade);
- A pretensão de ter certeza do que é melhor para o outro;
- Um desejo de poder, disfarçado de gosto pelo "sucesso";
- O querer o melhor para si, mesmo às custas do outro ("sem querer mal, é claro");
- Uma relação de exploração perante nossas fontes de nutrição (em si, do outro, da vida);
- Outros modos de apropriação da verdade...
O fato é que o patriarcado está em todos e todas nós. E é aí que entra a nossa participação individual no "problema", ao trazer para nós a elaboração da sombra que se apresenta, refletindo sobre o que ela revela em nós, e como vamos lidar com ela. É nesse diálogo que podemos construir um caminho paralelo de atravessamento do patriarcado. Porque já é tempo!
Sombra e individuação: o caminho da transformação
Reconhecer o patriarcado em nós significa dar passos para a alteridade(alteração, mudança, o que é outro) com maior consciência. Encontrar uma saída para a harmonização entre as polaridades, entre o feminino e o masculino, entre eu e o outro, desconstruindo e reconstruindo a si e ao outro. Estamos falando então de uma suspensão do Eu para caminhar em direção ao outro - uma tarefa nada comum para o nosso ego. Envolve colocar-se no lugar do outro e, portanto, religar-se ao outro.
É claro que essa proposta vai de encontro à crença excludente do patriarcado, sendo portanto um caminho para a superação do próprio patriarcado, da crise que se manifesta na contemporaneidade em suas diferentes faces. E é claro que é uma difícil tarefa para nós, porque envolve uma morte simbólica, uma passagem de um estado conhecido a outro desconhecido, que revela o verdadeiro eu e o verdadeiro outro. Requer sair de nosso lugar e visitar o lugar do outro, dialogar.
É do contato com a sombra, em uma dinâmica de mortes e renascimentos, deixando para trás algumas verdades, integrando a sombra "à vida", tornando-se consciente dela e atribuindo-lhe algum valor, que desenvolve-se o processo de individuação, que é, segundo Jung, a formação e particularização do ser individual, "o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva" (JUNG, 2013).
Se negamos o patriarcado fora como sendo algo também nosso, ele se manifesta com cada vez mais força, para reforçar o nosso problema de cegueira, de não enxergar que TEMOS UM MASCULINO DOENTIO - em nossas raízes culturais de formação europeia, no paradigma da modernidade de onde isso vem, no 'espírito da época', no Ser Humano de nossa época.
Uma mudança se mostra necessária nos níveis institucional e psíquico. Na verdade ela já se realiza, já caminha através dos destroços que por vezes insistimos em reerguer. Parece ser uma tarefa que não se pode mais adiar.
Passa a ser um ato de responsabilidade ética integrar individualmente os conteúdos inconscientes que se manifestam na consciência nacional. Estando "de um lado" ou "de outro", é preciso perceber o oposto à sua própria verdade, caminhar em sua direção, conversar com isso. Não se trata, é claro, de passar a assumir uma determinada postura, mas sim de dar-se conta do quanto há em si dos aspectos escancarados à volta, tomando-os para si em algum nível.
De um lugar de "verdade", não conseguiremos integrar a nossa sombra, e permaneceremos nesse embate de "lados", de bem e mal "relativos". É preciso dar um passo nessa integração entre masculino e feminino em cada um de nós, cedendo ou se abrindo a "pisar em outro território", tido como sujo, errado, avesso a nós. É preciso visitar essa região sombria, pois é isso que significa iluminar, e dar à luz outra realidade.
Jung nos chama atenção para o fato de que "somente pessoas inconscientes e não críticas acham que podem permanecer em estado duradouro de bondade moral. Pelo fato de faltar-lhes autocrítica, o que predomina é a autoilusão", enquanto que uma consciência psicológica mais desenvolvida (no sentido de percepção ampliada) traz à luz o conflito moral latente, encarando as oposições percebidas.
Num contexto no qual a cordialidade de sempre cede lugar a ações e reações extremistas e violentas, polarizando a nação e comprometendo o estabelecimento do consenso político, é notório um dos momentos cruciais de emergência da sombra coletiva em nossa história. Mais uma vez, e como nunca antes, tendo na imagem da 'crise' o encontro com o conteúdo arquetípico da morte, uma morte simbólica que proporciona o reconhecimento de novos valores, renascimento e transformação.
A crise abre caminho
Temos a crise política como uma fissura no diálogo e no estabelecimento de consensos; um comprometimento do respeito à diversidade e às diferentes opiniões, no sentido de uma polarização ideológica que mais paralisa e polariza do que encaminha saídas sociais, em um dado contexto de conflitos. E a ausência de um diálogo de fato político, nos coloca em uma ausência de caminhos para o consenso social - saída esta que parece impossível perante a emergência de pretensões totalitárias, extremistas, e que cooperam contra a vida.
Parece ser esse então um caminho necessário - a reconexão com a nossa identidade. Isso envolve retomar as nossas bases esquecidas, da identidade matriarcal que aqui prevalecia antes da chegada do patriarcalismo europeu, as bases da nossa mãe índia, e também a nossa mãe negra, que reivindicam lugar no espaço criado por uma lógica neoliberal que não é natural da nossa identidade.
Falamos de um patriarcado sombrio, mas sombria é também (pois "esquecida") a cosmovisão indígena que tinha lugar em nosso território antes da chegada do patriarcado. A visão ecológica do mundo, o respeito à natureza e o respeito ao outro como ética.
Sendo ou não reconhecida, a psique parece estar nos oferecendo uma chave para a abertura de uma nova porta de percepção a respeito do nosso lugar no momento atual, sobre a configuração na qual estamos inseridos, e qual o seu propósito em nossas vidas e em nosso momento histórico.
Precisamos do Estado e precisamos da participação íntima no problema, levar ele para casa, dormir e acordar com ele, como sendo nosso. Por que de fato é. Despertar para a necessidade de construir caminhos para a colaboração, a cooperação e a compaixão, de olhar para 'o que é outro', de colocar-se no lugar do outro, de integrar o oposto, em fim, de sair da dimensão totalitária do eu para a dimensão da solidariedade e da fraternidade, adentrando uma visão ecológica da sociedade. Não é um desafio pequeno. E cabe sempre àqueles com maior consciência, a responsabilidade de ir à frente.
É uma crise que também parece solicitar a desconstrução ou ressignificação do 'pai simbólico coletivo' projetado no Estado, em uma face do masculino explorador, autoritário e repressor. A morte do pai e o nascimento do herói parece ser a fronteira na qual encontra-se arquetipicamente a sociedade brasileira, no sentido de uma ampliação da consciência relativa aos padrões enraizados do patriarcado. Um herói que cabe a cada um e a cada uma realizar em sua história pessoal.
Jung destaca que somente aquele que se encontra tão organizado em sua individualidade quanto a massa, pode opor-lhe resistência, buscando resgatar o objetivo único da própria vida. Em outras palavras, a individuação de cada um em particular constitui uma parte decisiva do caminho para a transformação cultural: "um progresso começa, portanto, sempre pela individuação, ou seja, por um ser singular, consciente de sua singularidade, que trilha um novo caminho por um terreno em que ninguém ainda pisou".
Em uma cultura que nega o conflito, estamos sendo colocados em um lugar de polarização e tensão que acontece, antes de tudo, dentro de nós. Carregamos em nossas angústias individuais as demandas emocionais de uma coletividade inteira, as angústias de toda uma nação, e da humanidade em sua época, reveladas em cada pessoa a fim de serem transformadas. Uma jornada sem certezas, mas com sentido, através da qual cuidamos do mundo inteiro ao cuidar de nós mesmos, trabalhando em nós o que se apresenta, nessa difícil travessia de realizar a alteridade, consciente e inconscientemente trilhada por nós. Então, mais do que nunca, me pergunto: o que essa conjuntura diz sobre mim? e o que posso transformar no patriarcado que me habita? como podemos trabalhar o patriarcado em nós? Fica a reflexão.
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*Síntese do texto monográfico:
FREIRE, A. C. Psicologia junguiana na contemporaneidade - a individuação frente ao patriarcado na crise política brasileira. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2019.
REFERÊNCIAS
C. G. JUNG. Aspectos do drama contemporâneo - Volume 10/2. Petrópolis: Vozes, 2012.
_________ . Presente e futuro - Volume 10/1. Petrópolis: Vozes, 2013.
_________ . Civilização em transição - Volume 10/3. Petrópolis: Vozes, 2013.
MATURANA, H. Conversaciones matrízticas y patriarcales. In: MATURANA, H.; VERDEN-ZÖLLER, G. Amor y juego: fundamentos olvidados de lo humano, desde el patriarcado a la democracia. 6 ed. Santiago de Chile: Ed. JCSAEZ, 2003.